3 - O carbonário Sebastião Tomás dos Santos
O professor Sebastião Tomás dos Santos, a quem na Póvoa chamavam o Zefinha, nasceu em 15 de Setembro de 1872, no lugar de Laceiras, em Cabanas, Carregal do Sal. Teve um começo muito humilde, como pastor, mas, se numa das mãos lhe viam a vara do ofício, na outra segurava um livro. Um dia, com a quarta classe, partiu da sua terra à aventura, empregou-se no comércio em Santarém, e fez o curso liceal. Mais tarde, foi sargento de infantaria e habilitou-se para o ensino.
Na Póvoa de Varzim
Ensinou em Lisboa, no Liceu do Carmo, antes de vir para o da Póvoa, em 1908, para ensinar Matemática, como professor provisório, com 36 anos e sem dúvida já casado. Viveu no arrabalde sul da Póvoa, na “Vila de S. Brás”.
Em 27 de Fevereiro de 1911, tornou-se administrador do concelho, em substituição de José Pedro de Sousa Campos.
Ao menos durante parte do tempo da sua administração, acumulou, com o ensino, a responsabilidade do registo civil.
Tomás dos Santos devia integrar aquele grupo de intelectuais ditos liberais que o Mons. Manuel Amorim uma vez assinala, ligados ao Café Chinês e ao Centro Republicano. Aquando da proclamação da República na Póvoa de Varzim, dia 7 de Outubro de 1910, não faltou à chamada para apor a sua assinatura. Era então um homem novo, um lutador republicano, com preparação académica pouco comum.
Pelos vistos, Sebastião Tomás dos Santos era carbonário. Como veio para o Liceu da Póvoa no ano lectivo de 1908-1909, "obrigado a abandonar Lisboa como perigoso às instituições monárquicas", tal deve ter tido como causa próxima o Regicídio. Nomeado em 21 de Outubro, entrou em exercício em 29 de Outubro.
Habilitações
Estranhamente, Sebastião Tomás dos Santos teria coleccionado vários cursos, num tempo em que isso seria muito pouco comum e ainda mais num jovem que não tinha qualquer apoio familiar.
Apesar de, na Póvoa, ao menos uma vez, lhe terem chamado doutor, o único curso que lhe outorgava o título de doutor terá sido só o bacharelato em Filosofia, que concluiu posteriormente, em 1915-1916.
Também surpreende que os seus cursos se repartissem pelo campo das ciências e do das letras.
Em 1909-1910, no Liceu, distribuíram-lhe a leccionação destas disciplinas: Matemática, Ciências Naturais e Desenho, mas, pelos vistos, também Alemão.
A esposa deveria ser de família abastada uma vez que há razões para pensar que o casal gozava de boas condições económicas.
Edital que o administrador Sebastião Tomás dos Santos fez publicar na imprensa poveira.
A tomada de posse como Administrador: o lobo vestiu-se de cordeiro
A tomada de posse de Sebastião Tomás dos Santos como administrador teve lugar em 27/2/1911; ele próprio o anunciou em telegrama ao Governador Civil:
“Tenho a honra de levar ao conhecimento de V. Ex.cia que tomei hoje posse do cargo de Administrador deste concelho, para que fui nomeado por despacho do Ex.mo Ministro do Interior, de 23 do corrente”.
Na altura proferiu este discurso:
“Cidadãos e amigos
Tomando posse da Administração deste concelho, devo confessar-vos que, ao contrário do que alguém possa supor, não me seduziram as honras do mando nem fui nunca alvejado pela vaidade do destaque.
Aceitei de boa vontade este cargo não pelo que ele tem de agradável, mas sim pelo que ele tem de espinhoso.
Humilde obreiro da República, pela República trabalhei sempre; e de tal modo defendi o meu ideal que como perigoso às instituições monárquicas, eu me vi obrigado a abandonar Lisboa.
Como humilde defensor da República me apresento hoje aqui.
Não duvideis nunca da sinceridade das minhas intenções, não duvideis nunca da minha vontade de acertar.
Por mais de uma vez fui perseguido pela monarquia, mas nem a República é um regímen de perseguição, nem eu tenho qualidades de perseguidor.
A República é um regímen de paz, de moralidade, de justiça, de progresso e de tolerância.
Mas não devem os mal-intencionados confundir a tolerância com a cobardia.
A República é um campo aberto a todas as actividades; todo o homem honesto, todo homem de passado limpo de entre vós deve com a parcela do seu esforço cooperar no engrandecimento desta terra, deve com a sua boa vontade cooperar na defesa da República.
É essa leal e dedicada cooperação de patriotas que eu espero de todos e agradeço a cada um.
Fostes algum dia monárquico?
Talvez.
Monárquico sincero, leal, honrado, sem dúvida.
Mas no dia em que a Monarquia se vos apresentou manchada pela corrupção, coberta de lama por latrocínios de milhares de contos, estigmatizada enfim pela degradação moral mais abjecta, perdestes a vossa fé monárquica, e a República pôde implantar-se sem um único protesto vosso.
Ora se não estais com a Monarquia estais com a República e esta muito espera de vós.
Entre vós nasceram Eça de Queirós e Rocha Peixoto, homens que não honram somente esta terra, mas todo o Portugal, honram a nossa pátria.
Entre vós nasceu o ilustre chefe local do partido republicano, Dr. João Pedro de Sousa Campos, cuja austeridade de carácter é de uma honestidade inconcussa, cuja envergadura moral e política honra não só esta vila, mas todo o Partido Republicano Português.
Copiai estes virtuosos exemplos de trabalho e de nobreza de carácter; educai vossos filhos na escola da moral e do dever e vê-los-eis, em breve, se o não fordes já, sinceros republicanos, sem haver dado por isso.
É que a República é a Moral, é a Ordem, é a Liberdade, é o Progresso.
Cidadãos! Meus Amigos!
Viva a República!”
É um texto bem escrito e construtivo, de paz, ao menos na aparência. De facto, estas palavras tinham para ele um sentido que escapava a muitos dos seus ouvintes. O lobo tinha-se vestido de cordeiro.
O primeiro ataque de Tomás dos Santos, a reacção d'O Poveiro, a grande humilhação do administrador
Mas Tomás dos Santos não esperou muito para despir a pele de cordeiro e mostrar-se na sua face lupina. Debatia-se então sobre um documento dos bispos portugueses que deveria ser lido nas igrejas, ao que Afonso Costa opôs uma terminante proibição. O novo administrador toma, no caso, uma atitude bem capaz agradar aos seus mais radicais correligionários e certamente inspirada no estilo discriminatório do Ministro da Justiça. É ao mesmo Afonso Costa que no dia 5, “de manhã”, envia o seguinte telegrama:
“Ex.mo Ministro da Justiça
Lisboa
Ao tomar posse estava avisado prior Póvoa que não leu pastoral mas falando missa conventual disse ia consultar o arcebispo e se esse mandasse ler lia desse o que desse. Estão intimadas testemunhas terça-feira. Abades Amorim e Terroso leram parte pastoral antes avisados. Estes dois padres são conhecidos como reaccionários principalmente Amorim. Prior Póvoa maluco. Restantes sete freguesias não leram. Arcebispo primaz telegrafou ontem arcipreste Beiriz deste concelho aconselhando abades não ler pastoral nem referir-se a ela. Hoje cinco horas manhã saí percorrendo várias povoações mandando emissários às outras, nada anormal.
Administrador do Concelho.
Expedido em 5, de manhã”.
Grande fervor republicano o do novel administrador! Pelos vistos, os emissários mencionados por Tomás dos Santos eram autênticos espiões.
Este telegrama acabou por vir a público em dois jornais de circulação nacional, com a consequente difamação do visado. Imagina-se a surpresa e desagrado que isso terá provocado entre os católicos da Póvoa.
O Poveiro escandalizou-se com o telegrama do administrador; o "sensatíssimo discurso" que proferira ao tomar conta do cargo não fazia prever um insulto tão descarado:
“Parece-nos que Sua Ex.cia não foi feliz, o que deveras sentimos, em ferir uma nota tão forte, que tanto desagradou pela crueldade, que, mesmo que traduzisse uma verdade, era, porque tinha de o ser, desagradável e comburente para o infeliz. Sua Ex.cia perdoe-nos que lhe digamos com o maior respeito, mas também com a rudeza de marinheiro: os poveiros foram, são e hão-de ser generosos com os seus hóspedes, mas magoam-se quando esses não lhes sabem corresponder dignamente. [...]
Maluco! Que triste, e nós o sentimos deveras que assim o denomine um hóspede na nossa terra há dois anos, que certamente nunca se afastou do pároco desta vila, com quem se tem dado, sinal de que nunca receou qualquer manifestação que ele desse de alienado”.
O Arcipreste mencionado no telegrama era o culto e sereno padre poeta António Martins de Faria.
Uma curiosidade: na véspera do envio do telegrama, O Comércio, certamente a partir de informação saída no jornal republicano portuense Pátria, anunciara a suspensão d'O Poveiro. De facto, os acontecimentos que a seguir vão ter lugar acabarão por atingir uma clara ressonância nacional.
Grande humilhação para Tomás dos Santos!
No final daquele mês, em 29 de Março, o administrador há-de ter rejubilado por momentos quando telegrafou para o Governo Civil o seguinte:
“Fugiu Prior desta vila Manuel Martins Gonçalves da Silva, contra quem foi lavrado auto de investigação por incitamento povo a revolta. Povo republicano deste concelho representado nesta administração por uma grande comissão pede providências imediatas a fim de evitar conflitos”.
Enganara-se, e muito. O Prior da Póvoa não fugira: fora ao Porto falar com o Governador Civil e expor-lhe o seu caso.
De facto a luta vinha a aquecer, por várias razões, e recaía sobre o Prior uma ameaça real de detenção, já que ele não acatava pacatamente os desmandos da nascente República.
Ao Governador Civil terá proposto que, se o quisesse prender, o fizesse ali, no Porto, mas nunca na Póvoa. Mas foi tão convincente no esclarecimento das suas atitudes que trouxe de lá um salvo-conduto, com data de 30 de Março, que o isentava, ao menos em boa parte, da jurisdição do Administrador. Nele se lia:
“Enquanto por mim ou superiormente não for determinado o contrário, o Sr. Abade tem o direito de regressar à sua paróquia e exercer nela as suas funções, sem impedimento algum”.
Publicado n’O Poveiro em 8 de Abril, o documento há-de ter gelado as hostes republicanas.
O Comércio escandalizou-se
E O Comércio fizera, uma semana antes (30 de Março), um ataque cruel ao Prior. Intitulava-se a coluna: “O Prior da Póvoa” e tinha como subtítulo “Basta! Basta!”; depois corria esta prosa indignada, despropositada, insultuosa e ameaçadora:
“Não podemos, como republicanos, como patriotas, permitir que o Prior da Póvoa continue impunemente a difamar a República, a fomentar ódios, a sublevar o povo crente e ignorante da nossa terra.
Basta! Basta!
É necessário providências enérgicas; é urgente que as autoridades da nossa terra ponham cobro a este estado de coisas que não pode continuar por mais tempo.
Todos os domingos, a pretexto de qualquer coisa que nada tem com o culto, o Prior da Póvoa bota fala ao povo, no propósito único de alarmar a agente crédula, dizendo mentiras e falsidades, com uma hipocrisia de que só ele é capaz.
No último domingo, então, o sermão tornou-se escandaloso, único.
Custa mesmo a crer que o arrojo de tal criatura chegasse a tanto!
Hipocritamente lacrimoso, com refinadíssima impostura, o Prior da Póvoa fartou-se de dizer sandices, de difamar a República.
E fê-lo com tal arte – pois o prior é um sublime actor – que conseguiu comover o auditório, composto em grande maioria da nossa pobre gente do mar que saiu do templo aterrorizada pelo que ouviu!
Não; isto não pode ser!
É necessário; é urgente que o Prior da Póvoa seja expulso para sossego de todos. E há-de sê-lo, estamos disso certo, a fim de evitar actos violentos em perspectiva e que são imprescindíveis quando as providências se demoram e não satisfazem os brios dos patriotas.
Fica dito o bastante para sermos compreendidos.
Basta!”
Na lógica destes escritos está que a tudo a que a tirânica República (onde havia coisa semelhante à face da Terra?) dissesse só havia que obedecer sem discussão. E repare-se que a catilinária não tem por si nenhuma afirmação concreta do Prior, muito menos nenhum facto claramente comprometedor. O Prior não atacava a República, mas não perdoava à maçonaria, que influenciava o governo e a que Santos Graça pertencia – e escandalosamente promovia.
Como há-de ter sido doloroso resistir meses a fio a tão continuada prepotência!
Em 20 de Abril, sai a Lei da Separação. Terrível que ela era! Mas não surpreendia de todo: os visados já se vinham habituando a semelhantes desmandos. Já se proibira levar o Viático aos doentes (ao menos como dantes), a “cruz alçada” e sacerdotes de sobrepeliz nos enterros, dificultara-se o toque dos sinos e havia uma comissão paroquial que atrapalhava a vida paroquial.
O sectarismo do administrador
N’O Poveiro de 27/5/1911, saiu um artigo não assinado, de que se copia a segunda parte. Tinha por título: “Sectarismo: o ateu Sebastião Tomás dos Santos”. Faziam-se nele afirmações claras e demolidoras para o administrador e combatiam-se as principais orientações da República anticlerical. No final, afirmava-se a certeza da vitória da Igreja. Ainda se gozava dalguma daquela liberdade de expressão, que a tirania maçónica e abjecta de António dos Santos Graça havia de eliminar.
“Anda sempre na berlinda o nosso herói Sebastião Tomás dos Santos. Sempre que se oferece ocasião para manifestar o seu sectarismo ou o seu ateísmo, ei-lo na vanguarda de todos os mais, impios e ateus.
Quando tem de cumprir os seus deveres de empregado público, desconhece a lei, com grave prejuízo do povo; mas se se trata de dar mais uma ordem ou lembrar algum artigo da lei que vá de encontro aos sentimentos religiosos do nosso povo, já não há esquecimento, ignorância ou afazer que lhe impeça a sua acção e actividade. É o sectarismo em toda a sua hediondez! (…)
O conhecimento da lei só chega agora ao Sr. Tomás dos Santos para mais uma vez revelar ao povo crente da Póvoa o seu sectarismo, o seu ódio aos católicos e o seu desejo de seguir as pisadas do mação Afonso Costa, na perseguição à Igreja. Como leu em vários jornais que o mação Afonso Costa, na conferência de Braga, disse que desejava à Igreja uma boa e serena morte, sem sobressaltos, arrependida e contrita dos males que fez sofrer à Humanidade, ele, o pobre ateu, o sectário fiel, o acumulador-mor destas paragens, que, enquanto a teta der, podem dizer-lhe o que quiserem porque não se mexe; procura, sempre o que o ensejo o permite, perseguir os crentes e desprezar a Igreja. Pois saiba o mação Afonso Costa, o carbonário Tomás dos Santos, todos os ateus, ímpios e livres-pensadores, que a Igreja há dezanove séculos tem sido perseguida mas nunca vencida.
As medidas sectárias de um governo ateu podem fazer sofrer privações e desgostos a seus filhos, podem trazer dias de amargura e tristeza para a Igreja, mas ela sairá vitoriosa e triunfante.
Se o Sr. Tomás dos Santos, até aqui, sem motivo nem ocasião própria, se tem mostrado tão hostil aos católicos, quando chegar a ocasião de aplicar o decreto da Separação (aniquilação) da Igreja do Estado, como ele há-de revelar a toda a Póvoa o seu sectarismo, o seu ateísmo, o seu juramento à Carbonária?
Se a lei da Separação, disse Boto Machado, republicano e livre-pensador, numa conferência em Belém, Lisboa, parece obra de Satanás contra a omnipotência divina, Tomás dos Santos, como fiel amigo do Diabo, com que solicitude, alegria, raiva e furor não há-de proceder na aplicação da lei? Como ele há-de espezinhar os homens isentos e tementes a Deus?
Mas lembre-se, Sr. Tomás dos Santos, que os católicos poderão ser perseguidos, vilipendiados, desprezados, mas nunca cederão o seu direito, nunca serão traidores ao seu Deus, nunca renegarão a sua fé por um prato de lentilhas!
A Igreja poderá ser espezinhada, espoliada dos seus haveres, tiranizada, mas há-de vencer porque tem por ela a promessa divina. As palavras dos homens faltarão, mas a palavra de Deus nunca falta. Faça, pois, o que entender, satisfaça o seu ódio de ateu, cumpra o seu juramento de carbonário: os católicos, com os olhos em Deus e a fé no coração, hão-de vencer e a Igreja, com o auxílio divino, há-de triunfar. Desaparecerão da terra todos os mações, ímpios e ateus, mas a Igreja não desparecerá!!!”
O atentado contra a casa de Sebastião Tomás dos Santos
No dia 1 de Junho de 1911, da parte da tarde, Tomás dos Santos comunicou em telegrama ao Governador Civil:
“Casa Administrador alvejada esta noite com tiros e pedras, vidraças partidas, portas furadas. Rogo se digne enviar urgentíssimo dois polícias judiciários e oito civis. O Adm.dor Tomás dos Santos”.
A imprensa mais esquentada do republicanismo poveiro vai-se exaltar e apontar logo o dedo ao Prior e ao seu jornal. O Intransigente, A Propaganda e o próprio Comércio rivalizam entre si a ver quem é mais severo na condenação do facto, mas sempre com a esperança de atingir o pároco da Póvoa.
A edição de 4 de Junho d’A Propaganda, num artigo bem destacado, intitulado “Sicários e conspiradores”, gritava assim o seu escândalo:
“O que acaba de se passar na vila da Póvoa de Varzim é grave, gravíssimo, e a não serem tomadas providências, e rápidas, o caso é muito sério e teremos de optar por um de dois caminhos muito opostos: ou andar de bacamarte aperrado e atirar a matar sobre a quadrilha de conspiradores ou abandonar esta terra e fugir por falta de segurança.
Pela uma hora da noite de quarta para quinta-feira uma quadrilha de malfeitores-conspiradores assaltou a residência do Sr. Administrador deste concelho e, aos gritos subversivos contra as instituições, partiram-lhe três vidros das janelas, à pedrada, e despejaram cinco tiros de revólver, que foram assim empregados: uma bala furou uma telha do beiral, outra furou um vidro e a janela, outra bala cravou-se na parede e duas balas furaram a porta da rua. No portão do jardim colaram dois papéis, sendo um escrito a tinta vermelha onde, pouco mais ou menos, se lia o seguinte: se tentas saber quem foram os autores disto, o teu sangue correrá pelas ruas da Póvoa; já lavrou a tua sentença de morte o Comité Monárquico da Póvoa.
E assim puseram em sobressalto a família do representante do Ministério do Interior e assim desrespeitaram a primeira autoridade desta terra.
Isto é grave, gravíssimo, e é preciso saber-se, por força que não por jeito, quem é a escumalha de traidores que tão infamissimamente saiu à estacada na mais desaforada e ultrajante provocação.
É preciso saber-se quem foram os autores de tão nefando atentado; e, logo que apareçam, que sobre eles se descarregue o gládio da justiça, inexorável, para cortar cerce o mal que alastra, essa cáfila, talvez do conhecimento dos provocadores que semanalmente e no pasquim do Prior da Póvoa atacam por sistema, por malvadez, por espírito de seita negra, os caracteres impolutos, corações diamantinos, almas democratas de patriotas, amigos da República, amantes da Paz e do Progresso.
É preciso que a horda capitaneada pelo Prior da Póvoa seja chamada a contas, e mais é preciso que com o rótulo da República acabe o pasquim que o Prior da Póvoa pôs ao serviço de reaccionários, de monárquicos perigosos, de satânicos jesuítas que dizem tudo quanto maquinam, que bolsam todas as invectivas, que anavalham todas as reputações, numa peçonha de saramanganta, numa campanha de toupeira, numa ingratidão de jibóia entorpecida!
É preciso que se apurem os criminosos e se lhes dê o castigo devido, a eles a e aos cúmplices, que os deve haver.
Para trás, bando negro!
Para trás, inimigo da sociedade, Casério maldito, Revachol danado, Torquemada execrando, quem quer que sejas tu, sicário, alma patibular, desprezo dos homens!
Jogaram as últimas; é preciso que se exija unha por unha e dente por dente.
A escumalha da Póvoa, essa quadrilha de sicários e de selvagens que praticou o assalto tem mandante, tem guarda-costas, tem alguém interessado no abominável feito”
Neste escrito de ódio está o anticlericalismo em estado mais ou menos puro, um dos seus momentos poveiros mais ruidosos; está o manicómio republicano no que teve de mais abjecto. Fazem-se as acusações mais graves, atira-se a honra das pessoas para a lama. E, mais tarde, verifica-se que nada desta babugem tinha fundamento.
Casério e Revachol foram dois anarquistas guilhotinados na França em finais do século XIX. A quem propósito vinham aqui eles?
Torquemada foi um conhecido e terrível inquisidor espanhol. Que vem ele aqui fazer?
Os republicanos seriam por norma “caracteres impolutos, corações diamantinos” ou por excepção?
Que era “horda capitaneada pelo Prior da Póvoa”?
Os piores inimigos República eram os seus insensatos amigos.
Um dos papéis colados "no portão do jardim" exprimia-se deste modo:
“Esbirros!
Considera a manifestação d'esta noite, que foi por nós prepositadamente disposta para que não corresse o teu sangue, como um protesto e um aviso. Protesto contra as revoltantes prepotencias que a abominável republica de que és representante tem commettido sobre o povo d'este concelho. D'aviso para que durante os poucos dias em que ainda possas ser auctoridade não uses descer á pratica de violências que tornem impossível a conservação da tua vida e da dos teus. O Comité Monarchico Revolucionário do concelho da Povoa tomou todas as precauções para que ninguém possa descobrir os executores d'esta sentença. Não investigues que nada consegues. Ai! de ti se tentares vexar quem quer que seja!
Morra a Republica! Viva a Monarchia!”
Como, por toda a evidência da investigação levada a cabo, o desacato não foi provocado por gente ligada a O Poveiro, a conclusão parece ser a de que foi gente republicana que queria incriminar o Prior ou, segundo Tomás dos Santos, “obra de alguém a quem interessava a sua saída da administração”.
O documento foi muito bem planeado e aparenta ter sido escrito apenas com o objectivo de despistar os investigadores; e tê-lo-á conseguido plenamente. Repare-se que os criminosos estavam seguros de que ninguém os identificaria, isto é, tinham cobertura de gente influente. E os autores dos tiros não podiam ser inábeis populares poveiros, como se pensou erradamente. Ora a alternativa que ocorre é a de serem carbonários chamados do Porto para fazerem o serviço sujo e desaparecerem, estratagema que pelos visto era então bastante comum.
E isto pode apontar para António dos Santos Graça. Este crime tem grandes semelhanças com outro que foi cometido anos mais tarde contra a redacção do Liberal: o mesmo ataque nocturno, as mesmas armas de fogo e nenhuns rastos. E também dele saiu beneficiado o desprezível Amarelo.
Mas se o ataque da imprensa ao Prior foi brutal, irresponsável e perpassado de elaboradas flores de estilo oratório, a derrota vai ser proporcionalmente estrondosa.
O Poveiro começou por responder às acusações em tom comedido, mas, depois de passada a borrasca, usou um tom muito duro: homens da sua redacção tinham sido humilhados, estiveram presos e incomunicáveis cinco dias, por isso exigia-se agora uma desafronta.
O feitiço voltava-se contra o feiticeiro, contra Tomás dos Santos, contra a sua fúria lupina insensata, contra A Propaganda, contra O Comércio, contra O Intransigente. Por essa altura, emudeceram.
No fim do mês, porém, o cargo de Administrador passava para António dos Santos Graça, que se vai tornar responsável pelas maiores arbitrariedades republicanas na Póvoa e seu concelho. E não foram poucas: arrolamentos, exílio de párocos, silenciamento da imprensa da oposição, etc.
Como o Liceu ameaçava fechar por dificuldades económicas, o professor provisório Tomas dos Santos deve ter diligenciado a sua transferência para o Liceu de Rodrigues de Freitas, no Porto, onde de facto leccionou no ano lectivo de 1911-1912.
O fracasso de Tomás dos Santos
Politicamente, Sebastião Tomás dos Santos revelou-se um incompetente. Falhou quando chamou maluco ao Prior, quando anunciou que ele tinha fugido, falhou na sua cegueira sectária e sobretudo falhou na investigação ao ataque à sua casa.
Pensou que podia levar avante a sua ambição carbonária de destruir o catolicismo na Póvoa, mas deu só passos errados. Quis tudo de uma vez e ficou sem nada. O seu nome caiu na lama.
António dos Santos Graça, que era também discípulo subserviente de Afonso Costa, conseguiu aguentar-se como administrador muito mais tempo e enganar muita mais gente: deixou atrás de si feridas muito, muito mais graves.
Os “Vendilhões do templo” – discurso de Tomás dos Santos
No primeiro aniversário da República, Sebastião Tomás dos Santos discursou para os seus amigos radicais. Deu ao seu texto o título de “Vendilhões do Tempo”, sem nunca mostrar o que esse título tinha a ver com o que ia dizendo. O que pretendeu foi desforrar-se e desfechar um violento ataque ao clero. Chamou a Inquisição à baila e uns desmandos recentes de frades e freiras franceses. Para ele, isso representava toda a Igreja e a sua história e por isso proclamou a sua indignação contra ela. Escapava-lhe, por exemplo, que na Póvoa onde vivia não houvera nem havia nada de semelhante.
Aliás, os seus antepassados ideológicos, desde a Revolução Francesa à Comuna, desde o Marquês de Pombal aos Liberais, não muito distantes, tinham uma folha de serviço com páginas muito negras. Mas tudo isso ignora o antigo pastor de Carregal do Sal, o ex-sargento agora professor provisório e jacobino.
Há uma frase latina (timeo hominem unius libri) que se pode traduzir um pouco livremente por “tenho medo dum homem que só lê por um livro”. Era o caso do carbonário Sebastião Tomás dos Santos, que, lendo apenas pela cartilha jacobina, se mostrava destituído de todo o sentido crítico face às suas fontes.
Sebastião Tomás dos Santos no inquérito sobre o Complô Monárquico
Sebastião Tomás dos Santos só foi para o Liceu Rodrigues de Freitas já avançado o mês de Outubro de 1911. E ainda respondeu, no dia 20, ao inquérito sobre a eventual participação de gente da Póvoa no complô monárquico recentemente abortado no Porto.
A ala mais radical do republicanismo fora arredada da política e era agora administrador António dos Santos Graça; mas vão ser mesmo os radicais republicanos os depoentes do inquérito. As suas declarações têm dois alvos principais: o Prior, os seus colaboradores e o seu jornal, por um lado, e o novo administrador, por outro. As do Tomás dos Santos não são excepção.
Começa por afirmar que “tem a certeza moral de haver na Póvoa de Varzim elementos que surdamente e com tenacidade combatem a República; que esses elementos, à frente dos quais não podem deixar de estar o Prior, o Subdelegado de Saúde, médico Caetano d'Oliveira, Josué Trocado e sogro, farmacêutico Vieira e Padres Cascão e Amorim, contam com o apoio incondicional do clero e de quase toda a população do concelho, que sofre da terrível educação jesuítica”.
Esses elementos, continua, têm "por órgão o jornal O Poveiro onde de vez em quando se aconselha o povo à desobediência, mesmo à revolta, e em todos os números se acirra o ódio do povo aos republicanos mais em evidência”. “O mesmo jornal afirma o seu ódio à República achincalhando as suas leis e malquistando com o povo fanatizado os homens mais eminentes da Republica, tais como Afonso Costa”.
“Que a prova da existência do tal Comité Monárquico Revolucionário está no atentado feito à sua casa quando administrador do concelho, num aviso que os malfeitores deixaram afixado nessa mesma noite […]”
A partir, daqui o depoimento tem como alvo o administrador.
Ataca Santos Graça como oportunista, como pouco instruído, como dependente de todos. Um homem sem princípios, sem valor. De longe, sugere que pode ter sido ele o responsável pelo atentado de que tinha sido vítima.
Este e os outros documentos que comprometiam o administrador nunca estiveram no arquivo público, mas guardados em casa de António dos Santos Graça.
As afirmações mais curiosas de Tomás dos Santos são talvez as que dizem que os elementos que combatem a República “contam com o apoio incondicional do clero e de quase toda a população do concelho, que sofre da terrível educação jesuítica”. Tomadas à letra, significam que quase ninguém já queria a República, o que devia ser verdade - mas a culpa era dele, Tomás dos Santos, e de outros como ele.
A sua “certeza moral” sobre o Prior não passava dum desejo de carbonário.
Sebastião Tomás dos Santos concluiu o bacharelato em Filosofia com a modesta classificação de 12 valores.
No rasto de Sebastião Tomás dos Santos
Em 1 de Fevereiro de 1912, O Poveiro deu de novo notícias sobe Sebastião Tomás dos Santos: tinha sido bem recebido no liceu portuense de Rodrigues de Freitas e parece que não lhe faltava ambição. Copiam-se dois parágrafos:
“O ex-sargento Tomás dos Santos, o ex-administrador e ex-oficial do Registo Civil, aquele que, como administrador deste concelho, aceitou como sua mentora a ralé, a escumalha que habita nesta vila, essa que só é conhecida para fazer mal (sem nunca ter sabido fazer bem mesmo aos que lho fizeram) o inexorável (!) professor Tomás dos santos permitiu-se ao fim de três semanas de regência (!) – classificar com 2 a 8 valores mais de metade dos seus alunos, incluindo os da primeira classe!
O palerma pensa que assim se impõe no Porto, como pretendeu impor-se na Póvoa de Varzim?!”
No ano seguinte, Sebastião Tomás dos Santos foi para Coimbra, para o Liceu José Falcão, onde se manteve de 1912-1916. Lá fez o estágio e simultaneamente se bacharelou em Filosofia. Para quem tinha ambições de pensador, é estranho que tenha só conseguido a média de 12 valores.
De Coimbra, foi para Setúbal, onde leccionou de 1916 a 1918, como professor efectivo do liceu local. Teve lá nova experiência de administrador do concelho e novamente fugaz. Também não parece que lhe tenha corrido bem.
Os anos seguintes, até ao falecimento em 18 de Abril de 1952, passou-os em Lisboa, presumimos que como professor, até se reformar. Ignora-se como reagiu ao 28 de Maio e ao Estado Novo.
Nos anos finais da vida, parece que se deu a escrever para a imprensa e a preparar um livro sobre a multiplicação e divisão do cubo, que chamou “Os três problemas da Antiguidade”, mas que não terá publicado (estes três problemas da Antiguidade são a quadratura do círculo, a duplicação do cubo e a trissecção do ângulo).